sexta-feira, 15 de setembro de 2017

“Ivanas” da vida real: transgêneros que venceram o preconceito



Aaron Flynn: “Meus amigos me ligam para comentar cada semelhança da minha história com a da novela”
Segundo Flynn, a reação dos pais foi a parte mais difícil da história. “Eles não me expulsaram de casa, nada disso, mas eu via a tristeza deles. Eles me olhavam de maneira estranha, como se não me reconhecessem mais.” A situação durou alguns meses, sobretudo por parte da mãe, que demorou mais a aceitar. “Hoje ela vê que estou mais feliz e gosta do meu novo cabelo.”
Assim que decidiu ganhar um corpo masculino, o administrador procurou um médico para fazer o tratamento. “Estou tomando coragem para enfrentar a mesa de cirurgia e me livrar dos seios.” Profissionalmente, Flynn se destaca na sede brasileira da multinacional P&G, como supervisor de TI. Bem resolvido, diz que ainda falta superar algumas barreiras. “Não vou a banheiros públicos por medo de ser agredido”, admite.
Reviravolta aos 40
A professora Daniela Mourão passou a tomar hormônios em junho de 2016, mas só neste ano decidiu se apresentar com seu novo visual — maquiada e de vestido — a seus colegas do departamento de matemática da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá, onde leciona. A data escolhida foi 1º de março, dia em que completou 40 anos.
Transgênero: Daniela Mourão: “Não me arrependo de ter assumido tarde”© Veja SP Daniela Mourão: “Não me arrependo de ter assumido tarde”
Casada desde 2010, ela diz que sua mulher, no início, cogitou a separação, mas hoje a apoia. A esposa vive em um apartamento na região central, e Daniela vem para cá apenas nos fins de semana, devido ao trabalho em outra cidade. O restante da família, no entanto, ainda não aprova a mudança. “Meus pais não falam mais comigo. Minha irmã tem medo que eu ‘contamine’ meu sobrinho. E meus sogros querem que minha esposa se divorcie de mim.”
Apesar de quase ter morrido pelas agressões sofridas no ensino médio devido ao seu jeito afeminado, a acadêmica prosseguiu nos estudos: fez doutorado em engenharia e tecnologia espacial no Inpe e pós-doutorado em astronomia na Unesp. “Não me arrependo de ter assumido tarde. Se fizesse isso na adolescência, teria sido expulsa de casa e talvez precisasse ter me prostituído para sobreviver.”
Advogada pioneira
Uma das figuras mais conhecidas da população LGBT, Marcia Rocha, de 52 anos, entrou para a história em fevereiro deste ano como a primeira advogada do país com o nome social na carteira da OAB. Sócia de quatro empresas nas áreas de estacionamentos e empreendimentos imobiliários, que lhe rendem faturamento mensal de 70 000 reais, é uma ativista da causa.
Transgênero: Marcia Rocha: “Espero que, em breve, sejamos tão inseridos quanto mulheres, negros e homossexuais”© Veja SP Marcia Rocha: “Espero que, em breve, sejamos tão inseridos quanto mulheres, negros e homossexuais”
Presta auxílio na alteração de documentos de pessoas trans e criou em 2012 o Transempregos, portal que tem mais de 1 000 currículos para a colocação desse público no mercado de trabalho. “Espero que, em breve, sejamos tão inseridos quanto mulheres, negros e homossexuais”, almeja.
Marcia se assumiu em 2004. Enquanto a maioria dos trans prefere esquecer o passado, ela faz questão de lembrar que, antes da mudança, se chamava Marcos Cesar da Rocha. Na casa da mãe ainda há um retrato antigo em que ela aparece com a filha Giulia, hoje com 23 anos. No início, houve estranhamento, mas passou rápido. “Hoje a Giulia sente orgulho de me apresentar às suas amigas”, conta Marcia.
Abraços de apoio no escritório 
Em meados de 2015, a engenheira biomédica Maria Fernanda Hashimoto, 27, levava a vida dos sonhos de muita gente. Tinha um bom cargo na General Electric, onde controlava a qualidade dos maquinários e produtos da empresa, e uma noiva havia cinco anos. Mas, por dentro, sentia-se estraçalhada: não podia mais esconder que, na verdade, era uma mulher.
Transgênero: Maria Fernanda Hashimoto: “O mercado ainda é bem difícil, mas há companhias abertas às novas realidades”© Veja SP Maria Fernanda Hashimoto: “O mercado ainda é bem difícil, mas há companhias abertas às novas realidades”
O primeiro desafio foi abrir o jogo à futura esposa. Ela topou ficar ao seu lado e até hoje é uma das pessoas que mais a apoiam. Maria, então, passou a tomar altas doses de estrogênio. Cerca de um ano depois, tornou-se transexual (fez operação para mudar de sexo). Na fase da transformação, chegou a pedir demissão do trabalho. “Meu chefe não aceitou. Disse que não era motivo para eu sair”, conta.
O caso se espalhou no escritório e a acolhida também se mostrou surpreendente: volta e meia, ganhava abraços de desconhecidos no corredor. Em julho de 2016, recebeu uma proposta da multinacional Becton Dickinson. Seu pagamento no novo posto é de cerca de dez salários mínimos. “O mercado ainda é bem difícil, mas há companhias abertas às novas realidades”, diz Maria.
Fé na diversidade 
Presente em mais de cinquenta países, a Igreja da Comunidade Metropolitana, protestante e de origem americana, é uma das poucas no mundo que acolhem gays, lésbicas, transgêneros e afins. A filial em São Paulo fica em Santa Cecília, no centro. Um de seus fiéis é a pedagoga Alexya Salvador, de 36 anos, que frequenta o local desde 2011 com o marido, o professor Roberto Salvador Jr., 28, e os dois filhos, Gabriel, 12, e Ana Maria, 10.
Transgênero: Alexya Salvador: “Serei a primeira reverenda transgênero da América Latina”,© Veja SP Alexya Salvador: “Serei a primeira reverenda transgênero da América Latina”,
Alexya se encantou tanto com os ensinamentos religiosos que, em 2012, iniciou um curso de formação teológica. Em abril, tornou-se pastora auxiliar e, no fim do ano, será ordenada e subirá de posto. “Serei a primeira reverenda transgênero da América Latina”, comemora.
Formada em letras e pedagogia, ela começou a transformação há seis anos. Na época, já era casada com Salvador. “Meu marido é homossexual e me conheceu como Alexander. Tinha medo que ele não me aceitasse após me expressar como mulher”, comenta. O professor, no entanto, não apenas continuou o relacionamento, como topou a ideia de adotar filhos.
Primeiro, veio Gabriel, em 2015. Um ano depois, Ana Maria, que é transgênero como a mãe. “Posso passar toda a minha experiência a ela.” Há três anos, Alexya começou a costurar e hoje vende aventais de professores e roupas em geral. “Meu objetivo agora é abrir uma confecção voltada para o público trans”, planeja.
Demissão, despejo e depressão 
Formada em filosofia pela USP, a paulistana Luiza Coppieters, 38, decidiu se assumir como mulher em 2012. Naquele ano, passou a consumir hormônios e deixou o cabelo crescer. Ainda assim, disfarçava usando rabo de cavalo e camiseta para esconder os peitos. A revelação para a família, os amigos e os colegas de trabalho só ocorreu em 2014.
Transgênero: Luiza Coppieters: “Apesar de todo o perrengue por que passei, é muito melhor ser eu mesma do que ficar escondida para satisfazer às convenções sociais”© Veja SP Luiza Coppieters: “Apesar de todo o perrengue por que passei, é muito melhor ser eu mesma doque ficar escondida para satisfazer às convenções sociais
Os pais, irmãos e alunos aceitaram a situação, mas a notícia foi mal recebida pela direção do colégio em que ela dava aula de filosofia. “Começaram a cortar as minhas classes e meus grupos de estudo. Minha renda caiu para um terço do que recebia e tive de vender meus móveis e livros. Até que fui demitida, um ano depois”, comenta.
“Por falta de dinheiro, fui despejada de onde morava e aluguei um cubículo no centro. Cheguei a passar fome e entrei em depressão, mas me reergui graças à militância”, conta. Seus discursos calorosos em prol do movimento LGBT chamaram a atenção de entidades ligadas ao tema, que começaram a contratá-la para dar palestras.
No fim de 2015, o vereador Toninho Vespoli, do PSOL, convidou-a para entrar no partido, e, no ano seguinte, ela saiu como candidata a vereadora. Não conseguiu se eleger, mas comemorou os 9 744 votos recebidos. “Apesar de todo o perrengue por que passei, é muito melhor ser eu mesma do que ficar escondida para satisfazer às convenções sociais.”
Volta por cima após surras e expulsão de casa
Mesmo antes de se apresentar como mulher para a sociedade, há três anos, a artista plástica e designer Neon Cunha, de 47 anos, já se comportava de maneira feminina. Quando era criança, só gostava de bonecas e roupas de menina, e agia como se fosse uma delas. Isso, contudo, lhe trouxe uma série de problemas.
Transgênero: Neon Cunha, sobre a mãe: “Ela diz agora que sou a maior amiga e confidente dela”© Veja SP Neon Cunha, sobre a mãe: “Ela diz agora que sou a maior amiga e confidente dela”
“Meus pais viviam recebendo notificação da escola e minha família não saía comigo para evitar ‘constrangimento’”, lamenta. Ela conta que levava surras constantemente do pai e, aos 8 anos, um de seus onze irmãos tentou sufocá-la. “Ele colocou cobertores na minha cabeça e sentou em cima, dizendo que não aguentava mais todo mundo falando de mim, na rua.”
Para ajudar a complementar a renda doméstica – sua família é de classe média baixa –, Neon começou a trabalhar bem cedo. Aos 12 anos, conseguiu ingressar na Prefeitura de São Bernardo do Campo, no ABC, como mensageira. Foi promovida a auxiliar administrativa e, posteriormente, chegou ao departamento de comunicação, onde está até hoje – atualmente, ela é chefe de seção.
Nesse meio tempo, entrou para a faculdade de artes plásticas e se formou em 1992, aos 22 anos. Quando se preparava para fazer mestrado, sofreu um baque: foi expulsa de casa. “Eu era totalmente rejeitada pela minha família, e a gente foi se distanciando cada vez mais”, explica.
A designer teve de alugar um imóvel em caráter de urgência, o que consumiu o dinheiro que havia reservado para os estudos. Foi se recuperando aos poucos e, algum tempo depois, retomou projetos pessoais, entre eles, atuar com design e moda paralelamente ao cargo na prefeitura. Conseguiu alguns trabalhos nessa área. Hoje, é assistente de estilo da grife de Isaac Silva.
Neon começou a pensar em oficializar sua condição feminina em 2011, com a adoção de cabelos compridos, roupas de mulher e troca de nome, mas só três anos depois tomou a decisão. Ao mesmo tempo, também implantou prótese nos seios e fez lipo para acentuar a cintura.
Voltou a falar com a família e, atualmente, mantém uma relação próxima com a mãe. “Ela diz agora que sou a maior amiga e confidente dela”, comenta a artista plástica. “Não esqueço o que aconteceu, mas consegui perdoá-los na medida do possível.”

MSN

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